Receita para lavar roupa suja


Mergulhar a palavra suja em água sanitária depois de dois dias de molho, quarar ao sol do meio dia.
Algumas palavras quando alvejadas ao sol adquirem consistência de certeza.
Por exemplo, a palavra vida.
Existem outras, e a palavra amor é uma delas,
que são muito encardidas pelo uso, o que recomenda aguar e bater insistentemente na pedra, depois enxaguar em água corrente.
São poucas as que resistem a esses cuidados, mas existem aquelas.
Dizem que limão e sal tiram sujeira difícil, mas nada.
Toda tentativa de lavar piedade foi sempre em vão.
Agora nunca vi palavra tão suja como perda.
Perda e morte na medida em que são alvejadas soltam um líquido corrosivo, que atende pelo nome de argura, que é capaz de esvaziar o vigor da língua.
O aconselhado nesse caso é mantê-la sempre de molho em um amaciante de boa qualidade.
Agora, se o que você quer é somente aliviar as palavras do uso diário, pode usar simplesmente sabão em pó e máquina de lavar.
O perigo neste caso é misturar palavras que mancham no contato umas com as outras.
Culpa, por exemplo, a culpa mancha tudo que encontra e deve ser sempre alvejada sozinha.
Outra mistura pouco aconselhada é amizade e desejo,
já que desejo, sendo uma palavra intensa, quase agressiva,
pode o que não é inevitável, esgarçar a força delicada da palavra amizade.
Já a palavra força cai bem em qualquer mistura.
Outro cuidado importante é não lavar demais as palavras sob o risco de perderem o sentido.
A sujeirinha cotidiana quando não é excessiva, produz uma oleosidade que dá vigor aos sons.
Muito importante na arte de lavar palavras é saber reconhecer uma palavra limpa.
Conviva com a palavra durante alguns dias.
Deixe que se misture em seus gestos, que passeie pela expressão dos seus sentidos.
À noite, permita que se deite não a seu lado, mas sobre seu corpo.
Enquanto você dorme, a palavra, plantada em sua carne, prolifera em toda sua possibilidade.
Se puder suportar essa convivência até não mais perceber a presença dela, então você tem uma palavra limpa.
Uma palavra limpa é uma palavra possível.

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

A hora de partir não coincide com o horário do trem...

Esse Blog foi feito pra lavar, e como dizem por aí as águas lavam e levam,talvez por isso as lágrimas sejam como água...
Há muito queria ter postado algo sobre vc, mas toda vez que começava a escrever travava, ainda não consegui nem apagar da agenda do celular o teu número, será que no céu tem telefone???
Não consegui escrever mas li um poema e vou reproduzir aqui, pois é uma grande parte de tudo o que gostaria de dizer, de dizer e escutar ao fundo...
..Vaitimbora
Isadora
Vaitimbora
Tu é mulé de Xangô...





Na próxima vez em que encontrar um poeta (Urariano Mota)

Na próxima vez em que encontrar um poeta, olhe-o por inteiro. Não lhe pergunte por que ele faltou a compromissos assumidos antes com você. Ele tem lá suas razões. Ele pode ter faltado ao encontro por algumas razões primárias, básicas, simples, como ganhar dinheiro para beber, comer, pagar contas e aluguel. Ele pode ter faltado por essas razões que todos alheios à poesia pensamos que os poetas não têm, não podem e nem devem ter. Ele pode ter faltado ao encontro por razões até menos primárias. Como, por exemplo, um encanto súbito pelos olhos de uma jovem. Um copo de cerveja em uma conversa tão boa quanto inadiável. Ou até mesmo, imagine, por estar amargando uma dor por não conseguir aquela forma sonhada para um poema. Por razões, em suma, estúpidas, idiotas, imbecis, que pessoas honrosas, sérias, práticas, desprezam porque não aparecem nas páginas do guinness, não geram notícias, nem fazem renda no fim do mês.

Na próxima vez em que encontrar um poeta, você pode no máximo sentir-se um igual a ele. Igual a um homem como somente outro homem pode ser. Por isso olhe-o bem com atenção. Você está diante de um espetáculo raro, talvez único, insuperável. Você está diante de um criador que antes de justificar um lugar no céu, justifica um lugar junto aos malditos. Os mendigos, os párias, a quem ele se assemelha muitas vezes pelo estado em que se encontra. Os santos, os iluminados, de quem muitas vezes ele se aproxima pelas realidades que descobre. Os demônios, os diabos, os senhores das luzes dos infernos a quem muitas vezes eles se avizinham pela vida que levam. Os até mesmo os descaídos, os homens caídos em desgraça pela fraqueza, de quem eles se aproximam por empatia e semelhança. Na próxima vez em que encontrar um poeta, preste muita atenção, porque você está diante de uma soma de humanidades.

É claro que me refiro aos poetas que se realizam pela poesia. É claro que não me refiro aos poetas, diria melhor, aos artistas – de uma forma distinta de arte, mas artistas - que se realizam na vida pela adulação, pela gordura pegajosa, frouxa e falsa do elogio fácil, que é ticket e bilhete para o mercado. É claro que não me refiro aos poetas alpinistas, dedicados ao gênero de arte que sempre gera recompensa, recompensa que é alheia à poesia, mas é gêmea do sucesso. É claro que não me refiro aos poetas que galgam os postos admirados pelo bom burguês. Eu me refiro a poetas assim:

“Vamos continuar comendo porcarias
Fodendo as marias, bebendo excreções
Fazendo mais josés que nos puxarão os pés”

É claro que me refiro a poetas à feição de um homem alto, negro e magro. Um homem que fala manso e baixo. Que ri, que sorri com dentes brancos em queixo descarnado. Um homem que se embriaga e não tropeça em público. Melhor, tropeça também, mas, malandro, faz do tropeço um gingado de capoeira, como se desse um novo e surpreendente salto de acrobata. Um homem de gosto tão fino que desenha as próprias roupas. Que poderia ser autor de grife. Mas não, que preferiu desenhar quando interpretava os seus petardos. As suas bombas incendiárias de inteligência.

“Pensar dói, pensar dói, pensar dói...”

Quem não ouviu as suas palavras, a repetir versos como uma lâmina que fere em recital, como estas:

“Onze horas,
onze anos de idade,
um botijão de gás
asfixia a criança
que sobe, ligeira, a ladeira
e à força das gravidades
não poderá mais crescer
sete horas,
setecentas cabecinhas
dentro do ônibus sagrado
Rezam sete ave-marias
De sete em sete segundos
E à força das gravidades
Não poderão mais subir
Meia-noite
Brasil do ano dois mil
Explode em artifícios
Camufla o novo holocausto
Sacrifica ao deus-bezerro
E à força das gravidades
Muito sangue há de correr
Sim, nós temos super-heróis
Só não estão na TV
Nem nas áreas de lazer
Em qualquer dificuldade
Em caso de overdose
E à força das gravidades
Chamem o Batmam!”.

Quem não ouviu isso da sua boca, não sabe nem conhece ainda a fruição da poesia que é música. Como um gozo musical da inteligência. Por isso digo, enfim.

Da próxima vez em que encontrar um poeta como França, o genial França, diga o quanto ele é importante. Diga-lhe o quanto ele é vital. Aperte-lhe a mão com força. Abrace-o calorosamente. Não tema ser ridículo. Não tema nem mesmo as lágrimas. Diga-lhe que você é feliz por ter a sorte de viver o dia e as horas em que ele vive. Diga e fale bem alto o que sente, para que você não procure depois mais uma estrela no céu. Mais uma inútil, compensatória estrela no céu. Fale agora. Diga o quanto o respeita agora. Você pode nunca mais ter outra oportunidade.

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