Receita para lavar roupa suja
Mergulhar a palavra suja em água sanitária depois de dois dias de molho, quarar ao sol do meio dia.
Algumas palavras quando alvejadas ao sol adquirem consistência de certeza.
Por exemplo, a palavra vida.
Existem outras, e a palavra amor é uma delas,
que são muito encardidas pelo uso, o que recomenda aguar e bater insistentemente na pedra, depois enxaguar em água corrente.
São poucas as que resistem a esses cuidados, mas existem aquelas.
Dizem que limão e sal tiram sujeira difícil, mas nada.
Toda tentativa de lavar piedade foi sempre em vão.
Agora nunca vi palavra tão suja como perda.
Perda e morte na medida em que são alvejadas soltam um líquido corrosivo, que atende pelo nome de argura, que é capaz de esvaziar o vigor da língua.
O aconselhado nesse caso é mantê-la sempre de molho em um amaciante de boa qualidade.
Agora, se o que você quer é somente aliviar as palavras do uso diário, pode usar simplesmente sabão em pó e máquina de lavar.
O perigo neste caso é misturar palavras que mancham no contato umas com as outras.
Culpa, por exemplo, a culpa mancha tudo que encontra e deve ser sempre alvejada sozinha.
Outra mistura pouco aconselhada é amizade e desejo,
já que desejo, sendo uma palavra intensa, quase agressiva,
pode o que não é inevitável, esgarçar a força delicada da palavra amizade.
Já a palavra força cai bem em qualquer mistura.
Outro cuidado importante é não lavar demais as palavras sob o risco de perderem o sentido.
A sujeirinha cotidiana quando não é excessiva, produz uma oleosidade que dá vigor aos sons.
Muito importante na arte de lavar palavras é saber reconhecer uma palavra limpa.
Conviva com a palavra durante alguns dias.
Deixe que se misture em seus gestos, que passeie pela expressão dos seus sentidos.
À noite, permita que se deite não a seu lado, mas sobre seu corpo.
Enquanto você dorme, a palavra, plantada em sua carne, prolifera em toda sua possibilidade.
Se puder suportar essa convivência até não mais perceber a presença dela, então você tem uma palavra limpa.
Uma palavra limpa é uma palavra possível.
sábado, 9 de maio de 2009
Morreu!
Logo após o natal morreu,e lembro dela, lembro de minha mãe.
Legou-me o amor a vida, e algo do perfil, surpreendianos sempre ,e nesta época de avaliações e preparativos das festa de fim de ano a noticia: Morre a senhora. Talvez tenha dado a si um presente todo singular: a libertação do sofrimento que a doença lhe causava.
Depois da despedida,senti-me atropelada por um trator, pois nessas horas todas as vãs filosofias se calam, diante da invocação da infância, da adolescência, de nossos conflitos e cumplicidades, e a contagem das vezes que não a visitei, em que não tive paciência, em que não fui a filha que poderia ter sido, embora tenha feito o melhor qe podia.
Mas o auto-retrato é inevitável,como a auto-piedade e um tom meio patético:Nunca mais serei pensada como filha. E afinal quem sou a esta altura?
Do meu pai herdei a retidão e certa melancólia: o olhar sobre o que vem atrás do espelho. Da minha mãe, o otimismo e a alegria. Seu sorriso largo, sua voz que ainda ecoa por toda minha alma. Da remota linhagem deve ter vindo o novelo de fios que tramam alma e imagem, ninguém sabe de quando nem de onde. Não sei se importa, mas o trabalho e a dor, a fantasia, a obstinada procura, alguma sorte, muita esperança, me construíram. Caminhões de falhas e desacertos, sempre a renovação, difícil dissabores fazem parte: maior foi a celebração da vida. Eu não me perdoaria nem ressentimento nem amargura.
Entre o começo e a morte, miragens: Não há muito de mim na personagem que imagina quem me lê e inventa e pendura nessa imaginação, como num cabide, seus próprios fantasmas. Mas uma coisa eu sei: nunca fui tão filha na orfandade. A essa altura da vida, sempre em crescimento, com as lutas pessoais e humanas, as contemplações glórias e derrotas fênix da própria existência como todos somos, me punge a súbita consciência de que nunca mais poderei dizer: Mãe!!!
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