Poema à boca fechada
Não direi:
Que o silêncio me sufoca e amordaça.
Calado estou, calado ficarei,
Pois que a língua que falo é de outra raça.
Palavras consumidas se acumulam,
Se represam, cisterna de águas mortas,
Ácidas mágoas em limos transformadas,
Vaza de fundo em que há raízes tortas.
Não direi:
Que nem sequer o esforço de as dizer merecem,
Palavras que não digam quanto sei
Neste retiro em que me não conhecem.
Nem só lodos se arrastam, nem só lamas,
Nem só animais bóiam, mortos, medos,
Túrgidos frutos em cachos se entrelaçam
No negro poço de onde sobem dedos.
Só direi,
Crispadamente recolhido e mudo,
Que quem se cala quando me calei
Não poderá morrer sem dizer tudo.
(In OS POEMAS POSSÍVEIS, Editorial CAMINHO, Lisboa, 1981. 3ª edição)
Morreu hoje o escritor português José Saramago, aos 87 anos, em Lanzarotte, nas Ilhas Canárias. Autor de 16 romances, foi com um deles, Ensaio Sobre a Cegueira, de 1995, que Saramago ganhou o Nobel de Literatura.
Entre a sua extensa bibliografia, estão, além do livro que lhe rendeu o Nobel, clássicos da literatura ocidental como A Jangada de Pedra, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, As Intermitências da Morte, entre outros. Saramago sempre recheou seus livros com duas características muito marcantes: a análise do homem e a crítica à sociedade. Longe do viés panfletário que essas duas características podem emanar, os livros de Saramago eram, essencialmente, cheios de poesia e lirismo.
Essa poesia e lirismo sobre a análise do homem e a crítica à sociedade começaram a aparecer, em drops, no Caderno de Saramago, blog que o autor fundou em 2008 e que passou a alimentar esporadicamente com trechos de escritos antigos [artigos, contos, ensaios] e com comentários sobre o cenário que o rodeava, as últimas impressões sobre o pensar e agir humanos. Em 2009, um compilado dos textos do blog foi publicado sob o título de O Caderno.
Lembrei de uma entrevista especial que o Jornal da Globo fez com Saramago,me lembrei de como fiquei emocionada em ver aquele homem de cabelos brancos, de palavras rápidas e raras, falava sobre os cheiros da infância, eternos na lembrança, sobre as certezas que o tempo trazia e, entre elas, claro, a morte era uma das mais vigorosas.
E hoje ela chegou para Saramago. Que o cheiro das oliveiras o acompanhe, amém.
—
Saramago publicou os seguintes romances:
Terra do Pecado [1947], Manual de Pintura e Caligrafia [1977], Levantado do Chão [1980], Memorial do Convento [1982], O Ano da Morte de Ricardo Reis [1984], A Jangada de Pedra [1986], História do Cerco de Lisboa [1989], O Evangelho Segundo Jesus Cristo [1991], Ensaio Sobre a Cegueira [1995], Todos os Nomes [1997], A Caverna [2000], O Homem Duplicado [2002], Ensaio Sobre a Lucidez [2004], As Intermitências da Morte [2005], A Viagem do Elefante [2008] e Caim [2009].
Receita para lavar roupa suja
Mergulhar a palavra suja em água sanitária depois de dois dias de molho, quarar ao sol do meio dia.
Algumas palavras quando alvejadas ao sol adquirem consistência de certeza.
Por exemplo, a palavra vida.
Existem outras, e a palavra amor é uma delas,
que são muito encardidas pelo uso, o que recomenda aguar e bater insistentemente na pedra, depois enxaguar em água corrente.
São poucas as que resistem a esses cuidados, mas existem aquelas.
Dizem que limão e sal tiram sujeira difícil, mas nada.
Toda tentativa de lavar piedade foi sempre em vão.
Agora nunca vi palavra tão suja como perda.
Perda e morte na medida em que são alvejadas soltam um líquido corrosivo, que atende pelo nome de argura, que é capaz de esvaziar o vigor da língua.
O aconselhado nesse caso é mantê-la sempre de molho em um amaciante de boa qualidade.
Agora, se o que você quer é somente aliviar as palavras do uso diário, pode usar simplesmente sabão em pó e máquina de lavar.
O perigo neste caso é misturar palavras que mancham no contato umas com as outras.
Culpa, por exemplo, a culpa mancha tudo que encontra e deve ser sempre alvejada sozinha.
Outra mistura pouco aconselhada é amizade e desejo,
já que desejo, sendo uma palavra intensa, quase agressiva,
pode o que não é inevitável, esgarçar a força delicada da palavra amizade.
Já a palavra força cai bem em qualquer mistura.
Outro cuidado importante é não lavar demais as palavras sob o risco de perderem o sentido.
A sujeirinha cotidiana quando não é excessiva, produz uma oleosidade que dá vigor aos sons.
Muito importante na arte de lavar palavras é saber reconhecer uma palavra limpa.
Conviva com a palavra durante alguns dias.
Deixe que se misture em seus gestos, que passeie pela expressão dos seus sentidos.
À noite, permita que se deite não a seu lado, mas sobre seu corpo.
Enquanto você dorme, a palavra, plantada em sua carne, prolifera em toda sua possibilidade.
Se puder suportar essa convivência até não mais perceber a presença dela, então você tem uma palavra limpa.
Uma palavra limpa é uma palavra possível.
sexta-feira, 18 de junho de 2010
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